Pouco antes de receber em Buenos Aires Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em sua primeira viagem ao exterior após assumir a Presidência pela terceira vez e de sediar a sétima reunião da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), o líder argentino, Alberto Fernández, antevê um ano difícil.
“As verdadeiras consequências negativas da Guerra da Ucrânia vão começar a ser vistas agora, e, dos milhões que a FAO [Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura] antecipou que passarão fome, muitos podem ser latino-americanos”, afirma ele. “Além disso, temos de nos preocupar com a institucionalidade da nossa região. É muito grave o que está ocorrendo no Peru.”
O líder argentino também elogiou a forma como Lula reagiu aos ataques golpistas em Brasília e afirmou que algo assim dificilmente ocorreria na Argentina, porque o país tem, segundo ele, “Forças Armadas alinhadas à institucionalidade”. “Devemos estar alertas, sem permitir que isso ocorra em nenhum lugar.”
Em entrevista à Folha de S.Paulo na quinta (19), na residência de Olivos, Fernández disse que, apesar da alta inflação -quase 100% ao ano- e do aumento da pobreza no país -mais de 40%-, está certo de que seu sucessor será peronista -e não descarta ser o candidato. A Argentina realizará eleições presidenciais neste ano.
Qual a importância do retorno do Brasil à Celac?
Estou terminando meu mandato à frente da Celac, e, neste tempo difícil, [o órgão] foi um mecanismo importante para levar a voz da América Latina à Cúpula das Américas e ao G7 e para participar da discussão sobre o conflito entre Ucrânia e Rússia. O ano que começa é determinante porque grande parte das consequências da guerra começará a ser vista agora. E quando a FAO diz que 300 milhões de pessoas passarão fome, preocupa-nos muito, porque sabemos que muitos desses podem ser latino-americanos. E vivemos um tempo particularmente convulsionado para a região, em que temos que trabalhar para garantir a institucionalidade da democracia.
É um bom momento para a volta do Brasil à Celac. É um país importante demais para ficar ausente de fóruns internacionais, como ocorreu com Bolsonaro. Foi muito forte não ver o país com a voz que sempre teve. Agora, começa para a Celac uma fase de integração regional em que o Brasil terá protagonismo.
O Brasil também esteve ausente do Mercosul, também ameaçado pelas tentativas do Uruguai de negociar tratados fora do bloco. Tem conversado com Lula sobre isso?
Sim, esses últimos anos foram ruins para o Mercosul. Mas não tanto devido às ações do [presidente do Uruguai] Lacalle Pou. Inclusive acho ótimo que Lula o visite logo depois. Tenho boa relação com Lacalle Pou. Posso discordar das ideias, mas no pessoal jamais tive um problema, não chegou nem perto de ser parecido ao que era minha relação com Bolsonaro. Com Lacalle Pou sempre pude conversar. O que não concordo é com seu método.
A globalização está mudando de forma. O que antes estava na moda, a “relocalização industrial”, que levava empresas alemãs ou francesas a produzirem tênis ou outros produtos no exterior, hoje vive um momento inverso. Essas empresas estão voltando a seus países, potencializando as regiões. O Uruguai deve entender que se deve buscar objetivos como sócio de uma região. Esse é o papel de países menores, enquanto o dos maiores é atender as assimetrias que existem, tirar os obstáculos para países menores.
Como vê a Guerra da Ucrânia? A Argentina vai se pronunciar novamente sobre isso?
Não deixei de falar com [o presidente Vladimir] Putin, mas nunca apoiamos a invasão. Na última vez que falei com ele, quando me telefonou para me felicitar pela vitória da Argentina na Copa, voltei a dizer que era necessário se sentar para resolver esse tema. E continuei deixando claro que a Argentina não apoia essa invasão.
O que o sr. achou dos episódios violentos no Brasil após a posse de Lula? Algo parecido poderia ocorrer na Argentina?
O que o Brasil viveu deve chamar a atenção do país e do continente. Lula resolveu o problema muito bem, convocando os outros dois Poderes e defendendo a institucionalidade do Brasil. Algo assim dificilmente ocorreria na Argentina, porque temos Forças Armadas alinhadas à institucionalidade. Mas tivemos um episódio gravíssimo que foi o atentado contra a vice-presidente Cristina Kirchner. Há um certo setor da direita latino-americana que pensa que a violência é um modo adequado para combater a democracia, ameaçar a sociedade. Devemos estar alertas, sem permitir que isso ocorra em nenhum lugar.
Houve uma mudança na direita da região?
Sim, em certos setores se potencializaram algumas características, na carona do que foi a gestão do [ex-presidente dos EUA] Donald Trump. Na América Latina, temos uma direita que está muito forte. No Chile, Boric ganhou a eleição, mas 45% da população votou numa proposta com características nazistas [em referência ao candidato derrotado, José Antonio Kast]. Aqui, ganhei, mas a direita teve 41% dos votos. Na Colômbia, a diferença foi parecida. A eleição do Brasil também foi muito disputada. É mais difícil construir grandes maiorias e é preciso aprender a lidar com isso e a defender a institucionalidade. Uma coisa é haver debate político, rivalidade, outra são ameaças à institucionalidade, como vem ocorrendo no Peru.
Tem gerado polêmica entre a oposição argentina a possível presença do líder venezuelano, Nicolás Maduro, na Celac. Por que o senhor a defende?
A Venezuela é parte da Celac, e Maduro está mais do que convidado. Até onde sei, virá. A posição da Argentina em relação à Venezuela é a de, por meio do Grupo de Contato, estimular os diálogos que estão sendo sediados no México. Acreditamos que eles podem dar bons resultados. A ideia é que venezuelanos decidam as coisas entre venezuelanos, não conosco.
O nível da relação comercial entre Brasil e Argentina caiu muito nos últimos anos. Como espera retomá-la?
Disso trataremos na visita de Lula, o Brasil ainda é o principal sócio comercial da Argentina, mas perdeu-se muito nos últimos anos. Uma possibilidade que nos anima é a de trabalhar com mais força na produção de carros elétricos, de usar mais o lítio que existe em grande quantidade na Argentina, de potencializar ainda mais nossa integrada produção automobilística.
É verdade que o senhor e Cristina Kirchner disputam a amizade de Lula? E que Lula estaria preocupado com as fricções entre os senhores?
Não, de modo algum [risos]. Posso ter diferenças com a vice-presidente, mas se temos uma coincidência é a de que Lula é uma pessoa muito especial para nós. São dois vínculos paralelos. Mas é verdade que ele se preocupa que os peronistas se mantenham unidos.
O senhor está no último ano do mandato. Como a avalia? Será candidato à reeleição?
Os sociólogos dizem que fenômenos têm de ser analisados num momento dado e numa sociedade dada, isso quer dizer que nem todos somos iguais. Digo isso porque considero que foi muito difícil suceder o desastre do que foi o governo Macri. Começar logo em seguida a pandemia do coronavírus, governar dois anos na pandemia e depois entrar numa guerra que alterou a equação econômica do mundo. Tendo em conta todo esse contexto, é um governo que vem funcionando bem. É certo que a pandemia nos afetou muito, mas também que fomos atrás das vacinas rapidamente e demos assistência aos argentinos.
A economia tem hoje problemas graves, mas por outro lado tem havido alta recuperação do emprego e pela primeira vez a Argentina crescerá por três anos seguidos, além de termos reestruturado nossa dívida. Agora, se me perguntar se estou satisfeito, não, as cifras da pobreza e da inflação preocupam muito.
O senhor será candidato? As chances da oposição vêm crescendo?
Tenho certeza de que a [aliança] Frente de Todos, peronista, vai vencer. Se acharem que sou o candidato, posso ser, ou que seja outra de nossas lideranças. A única coisa que não quero é que Macri volte a vencer. Macri ou qualquer um de seu círculo, Macri e o que ele representa, que é o oposto do que fizemos. Todos são Macri do outro lado [em referência a Horacio Larreta e Patricia Bullrich, que manifestam desejo de concorrer].
SYLVIA COLOMBO – FOLHAPRESS
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