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26 março 2023

'Lula falar em armação da PF ofende a mim e ao MP', diz promotor


Era 17 de janeiro de 2005. O promotor Lincoln Gakiya estava em uma farmácia, comprando fraldas, quando recebeu um telefonema que mudou sua vida. “Vá para casa já e aguarde lá, que a polícia vai entrar em contato contigo.” Fazia dois dias que seu segundo filho havia nascido. Pouco antes, ele tinha apresentado denúncias contra integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC) e pedido a internação deles em prisão de segurança máxima. A ligação era de um colega, de São Paulo, que interceptou plano para matar Gakiya, em Presidente Venceslau (SP). Desde então, sucederam-se as acusações contra membros da facção - mais de mil denúncias oferecidas.
Em 2018, ele conseguiu mandar para o sistema penitenciário federal Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder máximo do grupo. A partir daí, seu cotidiano virou de ponta-cabeça. O PCC até hoje envia drones para vigiar sua casa. Mais de uma dezena de PMs, carros blindados e uma rotina secreta o protegem da maior organização mafiosa da América do Sul, que tem 40 mil membros e movimenta R$ 1,2 bilhão por ano só com o tráfico internacional de drogas. Gakiya, de 56 anos, foi quem descobriu o plano contra o ex-juiz e hoje senador Sérgio Moro (União Brasil-PR).

Quando o sr. começou a investigar o PCC?

Entrei no Ministério Público em 1991. O PCC não existia. Em 1992 fui para Presidente Bernardes. Tinha 24 anos. Logo peguei uma rebelião no presídio. Participei das negociações e entrei com a tropa de choque. Em 1996, fui para Presidente Venceslau. Em 2006 a cúpula do PCC foi removida para a cidade.

Há 20 anos, pistoleiros do PCC mataram o juiz Antonio Machado Dias. Como esse crime marcou o sr.?

A morte dele foi uma quebra de paradigma. Quando entrei no Ministério Público, diziam que podíamos ficar tranquilos, que ninguém mexia com promotor e juiz, que nunca seríamos atingidos pelo crime organizado. Eu era amigo do Machadinho. Trabalhei com ele e pescávamos juntos. Isso me marcou. Considero esse episódio como um dos que me impulsionaram a atuar contra o PCC.

O País aprendeu alguma coisa com esse crime?

Não temos memória. No início, houve comoção. Mas pouco foi feito. O avanço nas investigações só houve após (os ataques de) 2006. Até então, não tínhamos organograma do PCC ou sabíamos como ele funcionava.

Quando o sr. recebeu a primeira ameaça do PCC?

Fui “decretado” pela primeira vez em 2005. Ofereci uma denúncia contra presos da sintonia do PCC do interior e tive a ousadia de pedir a internação dos que comandavam essa célula no regime disciplinar diferenciado, o que não era comum. A primeira ordem para me matar veio desse pedido. A partir daí, fui escoltado porque havia uma ordem do PCC para me matar. Eu não entendi nada. Às vezes, me coloco na situação das pessoas citadas como alvo nas investigações. Fiquei em casa. E não podia falar nem para minha esposa, que havia acabado de dar à luz. Voltei a trabalhar e passei a investigar quem poderia mandar matar um promotor.

Em 2013, o sr. denunciou 175 membros da facção. Como a Justiça tratou o caso?

Esse caso tem mais um valor de reconhecimento formal do PCC e sobre como funcionava a facção, mas não temos ainda sentença condenatória. Não dei entrevista na época. Acreditava que, para salvaguardar minha segurança, precisava do anonimato. Mas a investigação levou a milhares de prisões e mortes em confrontos com a polícia. Ali, minha situação se agravou.

Ao longo dos anos, o mundo político usou o crime organizado para atingir adversários. Essa exploração, independentemente de quem a faz, prejudica o combate ao crime?

Com certeza isso atrapalha demais e prejudica. O próprio crime organizado assiste de camarote a esses casos. São Paulo não transferia lideranças do PCC para o sistema penitenciário federal para não parecer que o Estado não tinha capacidade de conter os presos. Estes sabiam que nunca seriam mandados para o sistema federal por razões políticas. A distância entre os presídios federais era importante para desarticular a comunicação dos detentos.

Em 2022, o sr. criticou Sérgio Moro por ele tentar explorar, na eleição, a transferência de Marcola para um presídio federal. Agora, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva diz que sua investigação é armação de Moro. Como vê essas situações?

Isso é muito caro para mim e para minha família, porque isso custou minha vida. A minha vida não volta mais. A minha vida normal de ir a uma praia, ao happy hour com meus amigos nas sextas-feiras, jogar futebol e passear com a família, isso não volta, pois 2018 mudou minha vida para sempre. Não sou herói. Sou um servidor público que cumpriu seu papel. Isso é muito caro para mim, pois todos que estão à minha volta estão sofrendo por uma escolha minha. Eu não consultei a minha família para fazer essa escolha. Em 2018, sofri sozinho. Tive muita resistência para fazer esse pedido de remoção (das lideranças do PCC para o sistema prisional federal). Descobrimos o terceiro plano de fuga do Marcola e tínhamos de tomar providências, pois estávamos em uma situação como essa do Moro. Esse resgate ocorreria nas eleições. Imagina um fim de semana de visitas, com morte de pessoas inocentes? Pedi sozinho a remoção de todos. E faria tudo de novo. O governo foi contra a remoção. A partir de então, o PCC disse que sabia da minha rotina, que me viu no trânsito, que eu andava com escolta. Essa carta foi apreendida com a visita de um companheiro de cela de Marcola. Daí para frente, minha vida mudou.

Sua casa foi filmada por drones do PCC?

Sim. Minha esposa me avisou: “Aqui em cima da piscina tem um drone parado”. Já tive um me acompanhando e acompanhando minha esposa.

Queria voltar à frase do Lula. Quando um presidente declara que o trabalho do sr. é uma armação, como fica o Estado diante disso?

É a desorganização do Estado. O Ministério Público é uma instituição do Estado. Sua primeira função é a defesa da ordem democrática, da Constituição. A gente não serve ao governador, nem ao procurador-geral. As polícias também. Eu não posso entender, qualquer que seja o presidente, seja (Jair) Bolsonaro ou Lula, utilizarem, às vezes, a “minha” polícia. A polícia é do Estado. Isso me deixa muito constrangido, quando se tenta usar a polícia para fins políticos. Os governantes vão passar e as instituições vão permanecer. Sou crítico quando esses políticos usam a remoção dos líderes do PCC. Essa remoção acabou com minha vida e da minha família. Fiquei com o ônus e os políticos ficaram com o bônus. Agora, falar que a polícia inventou essa operação está ofendendo a mim e ao Ministério Público. Essa operação começou com o Ministério Público de São Paulo. Levamos no dia 30 de janeiro a informação ao Moro e à sua esposa. Prometi que, em três meses, íamos identificar essas pessoas e efetuar as prisões. Aí eu louvo o trabalho da Polícia Federal. O Moro é um crítico do ministro da Justiça e opositor do presidente, mas a PF é republicana. Em apenas 45 dias, ela concluiu seu trabalho.

Moro defende tornar crime a preparação de atentados contra autoridades. O sr. concorda?

Creio que sim.

O sr. acha que o preso faccionado, como na Itália, deve ser submetido a regime carcerário diverso?

Ia chegar nisso. Temos uma facção que começou dentro do sistema. Isso faz com que muitos crimes sejam ainda comandados das unidades prisionais. É preciso rever a Lei de Execuções Penais. Marcola já cumpre 340 anos. O que um novo processo pode acrescentar à situação dele? Nada. Temos uma organização que tem cem indivíduos importantes entre 600 mil presos no País. O integrante de organização não deve ter benefício. Na Itália, há o artigo 41 bis, do Código Penitenciário, usado só para terrorismo e máfia. É preciso uma forma diferenciada de cumprimento de pena para as lideranças de facções.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


Estadão Conteudo

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