Em 2023, houve 155 mortes de
pessoas trans no Brasil, sendo 145 casos de assassinatos e dez que cometeram
suicídio após sofrer violências ou devido à invisibilidade trans. O número de
assassinatos aumentou 10,7%, em relação a 2022, quando houve 131 casos.
Os dados são na 7ª edição do
Dossiê: Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em
2023 da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra),
divulgado nesta segunda-feira (29) no Ministério dos Direitos Humanos, como
parte da programação dos 20 anos do Dia da Visibilidade Trans, celebrado
anualmente em 29 de janeiro..
Em 2023, a média foi de 12
assassinatos de trans por mês, com aumento de um caso por mês, em relação ao
ano anterior. De acordo com o levantamento, dos 145 homicídios ocorridos no ano
passado, cinco foram cometidos contra pessoas trans defensoras de direitos
humanos.
No ano passado, também foram
registradas pelo menos 69 tentativas de homicídio – 66 contra travestis e
mulheres trans, além de três homens trans/pessoas transmasculinas (aqueles que,
ao nascer, foram designadas como sendo do sexo feminino, mas se identificam com
o gênero masculino).
Segundo a Antra, a
publicação do dossiê tem o objetivo de contribuir para a erradicação da
transfobia, da travestifobia, do transfeminicídio e de outras violências
diretas e indiretas contra a população trans no país. A secretária de
Articulação Política da Antra, Bruna Benevides, afirma que as trocas de
informações pretendem assegurar o direito à vida de pessoas trans. “O dossiê
lança luz sobre o problema sistemático que acontece no Brasil, e a gente
precisa assumir o compromisso para garantir que a população trans pare de ser
assassinada, temos esse desafio”, diz Bruna, que é responsável pela coordenação
e análise de dados para produção do dossiê.
Em entrevista à Agência
Brasil e à Rádio Nacional, Bruna Benevides questionou o por quê de, mesmo com a
redução de 4,09% de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) (40.464 casos,
em 2023, no Brasil), os atos violentos contra pessoas trans estarem na
contramão e crescerem no último ano. “Chama muito a nossa atenção pelo fato de
que os homicídios diminuíram no contexto geral na sociedade brasileira, em 2023.
Então, isso acende um alerta de que a comunidade trans continua sendo
assassinada.”
O dossiê da Antra menciona
também o monitoramento internacional feito pelo Trans Murder Monitoring (TMM),
que analisa relatórios de homicídios de pessoas trans e com diversidade de
gênero, em todo o planeta, desde 2008. O documento assinala o Brasil como o
país que mais mata pessoas trans no mundo, pelo 15º ano consecutivo.
Na divulgação mais recente
do TMM, em novembro de 2023, pelo Dia Internacional da Memória Transgênero,
foram contabilizados mundialmente 321 assassinatos, registrados entre outubro
de 2022 e setembro de 2023. Pelo menos 100 deles foram no Brasil (31% do
total).
Localidade dos assassinatos
O dossiê informa que, no ano
passado, São Paulo foi o estado em que mais ocorreram assassinatos de pessoas
trans, com 19 casos, o que representa aumento de 73%, em relação a 2022. No Rio
de Janeiro, o número de assassinatos dobrou de 8, em 2022, para 16, em 2023 e
saiu da quinta posição para a segunda no ranking de homicídios contra este
grupo.
Os estados do Ceará, com 12
casos, do Paraná, com 12, e Minas Gerais, com 11, ocupam, respectivamente, a
terceira, quarta e quinta posições. A Antra não encontrou casos de
assassinatos, em 2023, nos estados do Acre, de Roraima, Santa Catarina, Sergipe
e do Tocantins, mas pode haver subnotificação.
A maior concentração de
assassinatos foi observada na Região Sudeste (37% dos casos); seguida pelo
Nordeste (36%); Sul (10% dos assassinatos); Norte (9%); e a região Centro-Oeste
(7%).
Os crimes ocorrem
majoritariamente em locais públicos (60%), principalmente, em via pública, em
ruas desertas. Dos 40% restantes, em locais privados, a residência da vítima
aparece com o local onde mais houve casos, além de motéis, unidades de saúde e
ainda residências de terceiros.
A maior parte dos
assassinatos ocorreu no período noturno, com 62% dos casos brasileiros.
Em 2023, a Associação
Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil também identificou 5 assassinatos
de travestis/mulheres transexuais brasileiras no exterior, sendo 2, na Itália;
2, na Espanha; e 1, no Paraguai.
Perfil
Dentre as 145 pessoas trans
assassinadas no ano passado, 34 casos não tinham informações sobre a idade das
vítimas. Se considerados apenas os 111 casos com identificação da idade, 90 das
vítimas tinham entre 13 e 39 anos, o que representa 81% do total. A idade média
das vítimas foi de 30,4 anos. A mais jovem trans assassinada no ano passado foi
uma adolescente de 13 anos. “Quando vemos determinadas bandeiras falando de
proteção das infâncias, sempre questionamos quais são as infâncias que estão
sendo protegidas no país?”, reflete Bruna.
Sobre o contexto social em
que viviam as vítimas, a prostituição é a fonte de renda mais frequente. O
estudo chama a atenção para o fato de 57% dos assassinados serem de travestis e
mulheres trans que atuam como profissionais do sexo, consideradas mais expostas
à violência direta, mais estigmatizadas e marginalizadas. “Buscamos, não apenas
proporcionar condições seguras para o exercício dessa atividade, mas também
criar oportunidades para aquelas que desejam buscar outras formas de emprego ou
geração de renda”, propõe o dossiê.
No último ano, dentre os
casos de homicídios em que foi possível identificar a raça da vítima, a Antra
observou que, pelo menos, 72% das vítimas eram pessoas trans negras (pretas e
pardas).
O estudo indica também que
uma pessoa trans, que não fez modificações corporais e não expressa sua
inconformidade de gênero claramente, não está exposta às mesmas violências que
as demais,”porque não confronta a sociedade cisgênero” (quando a identidade de
gênero corresponde ao gênero que lhe foi atribuído no nascimento).
“É possível afirmar que
tanto a raça quanto a identidade de gênero são fatores de risco de morte para a
população trans negra. Sobretudo considerando que são as pessoas trans negras
as que menos acessam as tecnologias de gênero, seja por meio da transição
social, física, hormonal ou cirúrgica e, por consequência, acabam sendo muito
mais facilmente sendo lidas a partir do olhar da cisgeneridade e da patrulha de
gênero, como alguém que não pertenceria ao gênero que expressa”, diz o estudo.
Quanto à identidade de
gênero, aumentou 4,6% o número de travestis e mulheres trans assassinadas em
2023, na comparação com 2022. Das 145 vítimas de assassinatos localizadas e
consideradas na pesquisa, 136 eram travestis/mulheres trans. Já homens trans e
pessoas transmasculinas são minoria em crimes de assassinatos: 9 casos.
Perfil dos suspeitos
A maior parte dos suspeitos,
em geral, não costumam ter relação direta, social ou afetiva com a vítima,
aponta o Dossiê de 2023.
Entre os casos em que os
suspeitos foram efetivamente reconhecidos, 11 tinham algum vínculo afetivo com
a vítima, como namorado, ex ou marido. Outros 12 casos ocorreram em contextos
de programas sexuais contratados pelos suspeitos. Em diversos casos, a pesquisa
identificou a narrativa em que os suspeitos tentaram transferir a
responsabilidade ou justificar o assassinato, sob alegação de legítima defesa.
Violência e crueldades
O dossiê divulga também
dados sobre os meios usados para cometer o assassinato, como tiro, facada,
espancamento, estrangulamento, apedrejamento e outros.
Os casos ocorrem em sua
maioria (54%) com uso excessivo de violência e requintes de crueldade.
Dos 122 casos com
informações, 56 (46%) foram cometidos por armas de fogo; 29 (24%) por arma
branca; 12 (10%) por espancamento, apedrejamento, asfixia e/ou estrangulamento
e 25 (20%) de outros meios, como pauladas, degolamento e corpos carbonizados.
Houve, ainda, 24 casos de clara execução, com número elevado de tiros ou a
queima-roupa ou de alto número de perfurações por objeto cortante.
Antigênero
O dossiê conclui que a
permanência das violências contra a comunidade trans faz parte de um projeto
político conservador, que, de acordo com a Antra, tornou-se preocupante para as
pautas de interesse desse grupo no Congresso Nacional.
Bruna Benevides rebate o que
considera ser um ambiente social e político hostil que tem como alvo as pessoas
trans, devido à existência de uma pauta antigênero. “Em 2023, foram mais de 300
projetos de lei que pretendiam institucionalizar a transfobia, no âmbito da
Câmara Legislativa Federal. Temos preocupação porque os acenos que esses
representantes, que esses políticos e figuras públicas fazem, é que as nossas
vidas não importam, o aceno que fala para a juventude é que não há um futuro
para elas existirem”, lamenta Bruna.
Subnotificação e impunidade
A Antra aponta ainda a
ausência de dados e a dificuldade de acesso a registros de violência
LGBTfóbica, somada à subnotificação de casos deste tipo, que prejudica a
realização de pesquisas.
Segundo a associação, não
existem referências demográficas sobre a população trans brasileira que
possibilitem o cálculo da proporção por habitantes, dos casos de violência
contra esse público no Brasil. O que se torna um grande desafio na produção de
estatísticas, ressalta Bruna. “O aumento [do número de assassinatos] simboliza
também um chamado urgente para que os órgãos de segurança pública em todos os
âmbitos: federal, municipal e estadual, se comprometam a ter dados, porque este
é o primeiro ponto. O Estado brasileiro não produz dados sobre violência,
sobretudo, o assassinato contra a comunidade trans. E a sociedade civil tem que
produzi-los”, acrescenta.
A associação destaca ainda a
ausência de ações de enfrentamento da violência contra pessoas LGBTQIA+ por
parte do Estado brasileiro; a falta de rigor nas investigações policiais de
casos de transfobia; a constante ausência, precariedade e fragilidade de dados
usada para ocultar ou simular uma diminuição dos casos, na realidade,
contribuem para impunidade, que favorece novos assassinatos e gera insegurança
na população trans.
“Ficou como um resquício da
ditadura [militar] em relação à comunidade trans. Algumas narrativas nos
colocam como inimigas. Então, as pessoas trans não vão confiar na segurança
pública, que é uma potencial violadora de seus direitos, de sua própria
segurança. Então, além de sofrer toda essa violência, as pessoas não se sentem
seguras”, constata Bruna Benevides.
Evento
O dossiê foi apresentado
nesta segunda-feira (29) em cerimônia em homenagem aos 20 anos da Visibilidade
Trans, promovida pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). A
atividade aconteceu no âmbito da campanha do MDHC alusiva aos 20 anos da
visibilidade trans.
“Esse dossiê é um pedido de
socorro para que nós possamos definitivamente enfrentar e erradicar a
transfobia e os assassinatos contra a nossa comunidade”, disse a secretária de
articulação política da Antra, Bruna Benevides.
Durante o evento, a
secretária nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, Symmy Larrat, disse que
a meta do governo é entregar uma política nacional dos direitos das pessoas
LGBTQIA+. “Ainda é a semente do que a gente quer, que essa política continue
promovendo acesso, dignidade, respeito e autonomia para a nossa população que é
tão vulnerabilizada e tão atacada”.
Para o ministro Silvio
Almeida, as questões relacionadas aos direitos das pessoas LGBTQIA+ se
desdobram em questões de interesse nacional. “Se falarmos em políticas de
saúde, educação, trabalho, emprego e renda e segurança pública sem falar das
pessoas trans, não estamos falando de nenhuma dessas políticas da maneira que
elas devem ser faladas. Não existirá cidadania, democracia e desenvolvimento
econômico no Brasil se as pessoas LGBTQIA+ não poderem exercer seus direitos”,
disse.
O MDHC também entregou o
Troféu Fernanda Benvenutty para iniciativas de promoção da conquista de
direitos e à formulação de políticas voltadas à cidadania e à dignidade das
pessoas trans ao longo dos últimos 20 anos.
Agência Brasil
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