“O que mais me inspira no trabalho com futebol é saber que faço parte de uma mudança”. Era 2013 quando Moara Miranda viu o destino bater em sua porta. Natural de Caetité, no interior da Bahia, Miranda sequer imaginava que se tornaria especialista em eventos esportivos, trabalhando com a FIFA, Conmebol, Comitê Olímpico Internacional e, atualmente, na Confederação de Futebol de Associação da América do Norte, Central e Caribe (CONCACAF). Em entrevista exclusiva à TRIBUNA DO NORTE, Moara conta os bastidores dos grandes eventos esportivos e os impactos socioeconômicos deixados pelos torneios. A especialista revelou que Natal tem grandes chances de ser escolhida como sede da Copa do Mundo 2027.
Moara participou da vistoria da FIFA na Arena Fonte Nova, na Bahia, para a Copa do Mundo 2027. De acordo com a especialista, um fator determinante para a escolha de uma cidade-sede é a rede hoteleira. Miranda explicou que quando a comitiva da FIFA visita um local, é analisado fatores além da estrutura do estádio. A entidade avalia, de forma criteriosa, questões referentes à mobilidade urbana e também à capacidade de hospedagem da cidade.
A especialista também explicou que as sedes, previamente anunciadas, não estão definidas oficialmente e que há uma grande probabilidade do Brasil ter 11 cidades recebendo os jogos do mundial em 2027. Para ela, assim como Salvador, Natal possui uma grande vantagem, principalmente no fator da rede hoteleira, e que provavelmente serão escolhidas por serem cidades turísticas.
“Aquelas cidades que foram anunciadas na apresentação não foram definidas. Pode ser que seja, mas pode haver novas. A CBF propõe para Fifa. E aí a FIFA vai olhar não só o estádio, porque não é só o estádio nessas horas, né? Então olham a parte de hoteleira, o centro de treinamento, estrutura da cidade, a logística do meio de transporte, como é a cidade num dia comum em termos de mobilidade e como seria essa cidade no dia de jogo”, explicou.
Moara também explica que outro fator analisado pela FIFA é o legado deixado nas cidades pós Copa. Ela esclareceu que a entidade quer ela quer que a cidade funcione, que tenha capacidade de atender aquele público do evento e o público da cidade.
“Os grandes eventos esportivos, como Copas do Mundo e Jogos Olímpicos, têm um impacto que vai muito além do curto prazo. Durante o evento, há uma explosão de empregos formais e informais. Porém, o legado é ainda mais importante. Ele envolve melhorias na infraestrutura, capacitação de profissionais e desenvolvimento de setores como turismo e hotelaria. Exemplos como Barcelona, que se transformou após as Olimpíadas de 1992, mostram como é possível usar o esporte para projetar uma cidade globalmente”, explicou Miranda.
Formada em marketing e comunicação, na Mary Ward Centre (Inglaterra) e também em negócios internacionais pela George State University (EUA), Moara fala que enfrentou preconceito ao atuar na parte de gestão. Para ela, é importante superar essa barreira cultural, principalmente para que a categoria se desenvolva. “O preconceito é evidente não só dentro de campo, mas também fora dele. Narradoras e comentaristas enfrentam críticas desproporcionais simplesmente por exercerem suas funções. Mesmo quando uma mulher domina o tema, sua opinião frequentemente não é levada com o mesmo peso que a de um homem. Essa barreira cultural precisa ser superada, pois só teremos investimentos consistentes quando houver maior visibilidade e, consequentemente, retorno financeiro.”, esclareceu.
O acaso
A entrada no mundo dos eventos esportivos nem sempre segue um caminho planejado. Foi o acaso que levou a especialista ao primeiro passo de sua carreira. “Minha história com o esporte (em eventos) começou por acaso. Um amigo me enviou um link no Facebook para uma vaga na Copa das Confederações de 2013. Não havia muitos detalhes, mas eu sabia que queria participar. Cheguei ao local indicado, e o auditório estava lotado. Descobri que a vaga era para motorista. Na hora, pensei: ‘Isso não é para mim’. Mas decidi ficar. No fim, acabei passando no processo seletivo.”, revela a especialista.
No ano seguinte, em 2014, Moara foi selecionada para Copa do Mundo no Brasil, onde atuou como Coordenadora de Marketing. “Como motorista da FIFA, fui além da função. Lembro de um incidente no primeiro jogo em Salvador. Um portão essencial estava fechado, e o segurança não nos deixava entrar. Desci do carro, conversei com ele, expliquei o contexto e consegui liberar a entrada. Essa atitude chamou a atenção do diretor de marketing, que começou a me ver como assistente pessoal. Essa proatividade abriu portas: no final da Copa das Confederações, ele recomendou meu nome para o Comitê Organizador da Copa do Mundo de 2014”, contou.
No mundial do Brasil, Moara conta que o evento foi uma virada de chave na forma como os estrangeiros enxergavam o país. Desta vez, atuando nos bastidores, Moara desenvolveu atividades além de solucionar conflitos, mas de planejar e implementar atividades relacionadas às marcas durante as competições e eventos. “A Copa do Mundo de 2014 foi um marco na minha vida. Fui contratada pelo Comitê Organizador e participei de momentos importantes, como o sorteio dos jogos. Lembro da resistência inicial que enfrentamos, mas também do quanto conseguimos superar. Esse evento mostrou ao mundo que somos capazes de fazer muito mais do que apenas trabalho braçal.”, descreveu a especialista.
Moara também atuou nos Jogos Olímpicos do Rio 2016, em Gestão das Instalações, planejando e operando o evento. Além disso, também esteve no Jogos Panamericanos em Santiago 2023, desta vez como consultora.
Já na Copa do Mundo Feminina de 2023, na Austrália e Nova Zelândia, Miranda atuou como Guest Operation Manager (Gerente de Operações e Convidados), e atualmente presta consultoria a CONCACAF, após ter atuado na Conmebol. Ela destaca o diferencial entre as confederações: enquanto a Conmebol tem 10 países e grandes campeões mundiais, a Concacaf conta com 41 países, mas nenhuma seleção campeã.
“Apesar de ter começado no futebol masculino, meu coração sempre esteve no feminino. Em 2023, tive a oportunidade de trabalhar na Copa do Mundo Feminina, na Austrália, o que foi um sonho pessoal realizado. Quando eu era criança, só via referências masculinas no futebol. Cresci admirando jogadores como Romário, mas não havia mulheres nos holofotes. Estar na maior Copa do Mundo feminina da história foi transformador. Foi um marco que reforçou a importância de dar visibilidade ao futebol feminino.”, revelou Moara.
Mentalidade
O futebol feminino enfrenta desafios, mas segue se consolidando como um mercado promissor. A modalidade tem apresentado um crescimento notável como produto de mercado nos últimos anos. Em 2024, o mercado de transferências internacionais atingiu um recorde, com gastos de US$ 6,8 milhões (R$ 38,3 milhões), mais que o dobro dos US$ 3 milhões (R$ 17 milhões) registrados no mesmo período do ano anterior. Ainda assim, de acordo com a análise de Moara, o progresso é freado por diretorias com mentalidade retrógrada, incapazes de acompanhar as oportunidades de investimento e evolução estrutural no esporte.
Ainda assim, de acordo com a análise de Moara, o progresso é freado por diretorias com mentalidade retrógrada, incapazes de acompanhar as oportunidades de investimento e evolução estrutural no esporte. “Apesar dos desafios, o futebol feminino tem demonstrado ser um excelente mercado em crescimento. Clubes como Corinthians e Ferroviária mostram que é possível ter sucesso com visão e planejamento. Infelizmente, a mentalidade de algumas diretorias ainda trava esse progresso. Muitas vezes, o mercado está disposto a investir, mas a estrutura e as ações dentro dos clubes não acompanham.”, explicou a especialista.
Miranda destacou que investimento e patrocínio no futebol feminino não devem ser vistos como ações de caridade, mas como estratégias de negócios com expectativa de retorno. De acordo com a especialista, o crescimento do setor tem sido impulsionado por alternativas como o streaming, que ampliam o alcance e o engajamento, substituindo em parte a dependência das transmissões tradicionais. Para que o potencial do esporte seja plenamente explorado, é fundamental que clubes e federações invistam em estruturas sólidas e atrativas, capazes de atrair patrocinadores e fidelizar o público.
“Eu sempre digo que o futebol feminino não é apenas um esporte; é uma questão social. Ele simboliza igualdade, quebra de barreiras e empoderamento. Para alcançar o nível de equiparação com o futebol masculino, é preciso mudar a mentalidade, superar preconceitos e investir em iniciativas que garantam visibilidade e qualidade. Esse é o caminho para transformar o esporte e a sociedade.”. explicou Moara.
A trajetória no futebol feminino muitas vezes é marcada pelo desejo de transformação e pelo impacto gerado em comunidades. Para quem vive essa realidade, cada passo dado, por menor que seja, é um reflexo de progresso e inspiração para o futuro do esporte. “O que mais me inspira no trabalho com futebol é saber que faço parte de uma mudança. Cada conquista, por menor que pareça, é um passo no avanço do futebol feminino. Por exemplo, fui a primeira a organizar um jogo de futebol feminino em Caetité, minha cidade natal. Hoje, existem times femininos de futsal lá. É gratificante saber que contribuo para transformar o cenário do esporte no Brasil”, comentou Miranda.
TRIBUNA DO NORTE